domingo, 26 de dezembro de 2010


O SOPRANO VERDIANO

Tinha desde miúdo, veja-se lá, e até há poucos anos, a ideia de que a heroína verdiana (sendo que em ópera, salvo rara excepções, as heroínas são sopranos) era uma espécie de mulher muito concreta, com os pés bem assentes na terra - sopranos de vozes gordas na sua maioria, com características spinto, algumas bem dramáticas; mulheres que sabem muito bem o que querem e não se perdem em fantasias. Considerava então Maria Callas a suprema representante do espírito e da vocalidade verdianos. Isto, é claro, generalizando. O facto de esta cantora ter dito que o compositor que cantava com mais agrado era Bellini devia ter-me alertado para que algo de “errado” estava naquele meu raciocínio. Tanto mais que sentia aquele concretismo das heroínas verdianas ainda mais sublinhado quando as confrontava com as heroínas bellinianas, verdadeiros vidrinhos ambulantes, sonhadoras, etéreas, profissionais do devaneio.
Mas, e há sempre um mas na vida, comecei a ouvir, mais e mais, Renata Tebaldi nas grandes heroínas do compositor de Busseto (Aida, Leonoras, da Forza e de Il Trovatore, Elisabetta do Don Carlo, Desdemona, enfim, Giovanna d’Arco - sim, uma versão ao vivo de cair para o lado!) e comecei a achar estranho aquele som sonhador, como que suspenso num fil d’un soffio etesio, que ela emprestava a todas elas. A mulher parecia andar drunfada, fosse qual fosse o papel. Tempo depois do nascimento desta perplexidade, foi ela própria a descodificar-me a coisa, quando numa entrevista que me deu há uns anos, me disse que Puccini a obrigava a ter os pés assentes na terra, quando o cantava, sendo que Verdi a fazia “partir”.
Das heroínas puccinianas falarei aqui noutra altura, mas esta frase de Tebaldi ajudou-me a ver o problema. É que depois foi só ir às partituras e constatar que a mulher estava mesmo certa naquela sua visão sonhadora e etérea. E porquê? Porque grande parte das heroínas verdianas são umas autênticas alienadas. Estão constantemente a sonhar com lugares outros, ou de sonho, ou de passado, ou de anseio, e nunca, mas nunca, estão contentes no espaço e no tempo em que lhes foi dado viver. Ele é a Elvira do Ernani (“Ernani, involami”; ou “Per lande ignude ti seguirà il mio piè”, na mesma ária – e a felicidade com que Elvira canta isto!), ele é a Aida (“O cieli azzurri, o verdi prati, o patria mia”, etc.), ele é a Elisabetta do Don Carlo (“Fontainebleau!”, etc.), ele é a Leonora do Trovatore (“D’amor sull’ali rosee”); ele é a Violetta de La Traviata (“Parigi noi lacieremo”… mas para onde?); e outros exemplos que me não chegam agora à memória. E que existem.
Heroínas concretas são, muito mais, as de Donizetti (mesmo a doida da Lucia pega numa faca e espeta-a muito concretissimamente no seu noivo – imaginamos uma heroína verdiana nestes preparos?), e as rossinianas, mas estas últimas escapam a esta galeria romântica, pois dão mulheres construídas ainda muito numa estética vocal de fins de século XVIII.
Para terminar este devaneio, um raro autógrafo de Tebaldi num programa de São Carlos. Ela só cá veio nos inícios da sua gloriosa carreira, e um dos papéis foi a Donna Elvira do Don Giovanni. O elenco era o que era, mas eu, se não me queixo de já não ter 20 anos, não vou agora queixar-me das récitas de arromba que se ouviam em São Carlos!

4 comentários:

  1. Muito gostaria de lê-lo sobre o mezzo-soprano verdiano. Ainda estou para descobrir figura lírica onde a dilaceração, a corrosão e mesmo a insanidade atinjam o pico de expressividade que podemos encontrar, por exemplo, na Azucena e na Amnéris (da COSSOTTO, em particular).

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  2. Gostei muito de ler o artigo dedicado às inesquecíveis heroinas verdianas... parabéns pelo seu excelente blog!

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  3. Amigos e amantes da ópera, boa tarde. Peço licença ao dono do blog e aos leitores para falar de algo que pode interessar a alguns de vocês.

    Trata-se da ópera "Nixon da China", que estará ao vivo nos cinemas do Brasil (por enquanto no Rio de Janeiro, Maringá, São José dos Campos, Campinas e Porto Alegre). É uma excelente oportunidade para assistir a esse trabalho ousado e transgressor, transmitido direto do MetOpera!

    http://www.youtube.com/watch?v=aCvzGsyjP-I

    Quando vai ser? Vai ser no dia 12 de FEVEREIRO!

    Caso queiram entrar em contato, escrevam para: socialmedia@mobz.com.br

    Um abraço,
    Marina D. Sussekind – LiveMobz

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